Em Dostoiévski e a dialética, Flávio Ricardo Vassoler põe em xeque a interpretação mais famosa da obra do romancista russo, eternizada pelo crítico soviético Mikhail Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski, de que seu conjunto comporia uma “catedral polifônica”, ou seja: um concerto de vozes em harmonia em uma construção erigida em bases sólidas. Fiódor Dostoiévski, por romances do porte de Irmãos Karamazov e Crime e castigo, é considerado um dos maiores escritores da história. Sua profunda investigação da psique humana, pensada filosoficamente através de seus personagens, o tornaram inspiração e leitura indispensável para inúmeras correntes de pensamento que surgiriam a partir da segunda metade do século XIX, dentre as quais se podem destacar o niilismo, o existencialismo e a própria disciplina da psicanálise. Significa dizer que Dostoiévski teve influência fundante na tradição filosófica que o sucedeu e que ainda rege, em boa parte, nossa concepção de mundo. Para Vassoler, a ideia de harmonia presente em Bakhtin vai de encontro ao caráter contraditório, dialético, da chamada catedral dostoievskiana. No cerne de seu argumento, o autor vai “aos porões”, ao que subjaz a essa construção harmoniosa para nela “insuflar ar dialético” e assim enxergar sua contraditoriedade latente. As vozes em harmonia de Dostoiévski comporiam, em sua investigação do indivíduo, um diagnóstico do capitalismo insurgente, em que o sujeito é também súdito: esse coro estaria abafado, enforcado pelas cordas vocais do subsolo. Vassoler então ressignifica a catedral e pensa uma polifonia dialética, vozes que contraporiam cristianismo e socialismo, Allan Kardec e Hegel, Cristo e Marx, Bakhtin e Adorno, contradições postas cuja síntese, a própria catedral, seria fruto de oposições e não mais de harmonia. O que torna ainda mais interessante a tese de Vassoler é pensar as limitações de Bakhtin à luz da época em que escreveu sua obra-prima, em pleno regime stalinista: a rigidez da ditadura implicava o apagamento do que era basilar da própria estrutura teórica que originou a Revolução Bolchevique, a contradição. Dostoiévski teria, então, projetado as afinidades entre o socialismo real e o capitalismo para muito além do dogmatismo da Guerra Fria, e, ao demonstrá-lo, Vassoler compõe um trabalho dialético e multifacetado, qual seu objeto de análise.
Sobre o autor(a)
Vassoler, Flávio Ricardo
Flávio Ricardo Vassoler é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras "O evangelho segundo Talião" (nVersos, 2013), "Tiro de misericórdia" (nVersos, 2014) e "Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo" (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios "Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade" (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos"(Hedra, 2018), de Machado de Assis. Escreve para o caderno literário ``Aliás'', do jornal O Estado de S. Paulo, para o caderno "Ilustríssima'', do jornal Folha de S.Paulo, e para as revistas Veja e Carta Capital. |