Meu nome é Heleno. Sou dramaturgo, protagonista deste prosa longa, primeiro romance de Marcelino Freire, e tenho um corpo morto de um michê para entregar ao seu pai e à sua mãe, mas não sei quem são e nem onde estão. Tudo porque nada escapa ao teatro. As coisas todas vêm ao palco e ficam aqui para sempre. Cheguei em São Paulo por causa de Carlos, meu primeiro amor, e para escrever peças, encantar plateias, “revelar esse mundo e inventar outros”. Para curar doenças, sofrer, amar, ser feliz, ser normal, ser outro, sempre outro narrando também a melancolia da infância, os restos mortais de tudo o que foi falado em minha casa e os fósseis que eu achava em meu quintal. Ah, se não fossem o público, os diretores, os jornalistas, os atores, os preparadores de elenco, os produtores, os outros nordestinos da técnica, eu não poderia fazer cara de necrotério, essa cara de forte, cara de rico, cara de vingança e cara de nada quando fico representando só para mim. E aí vêm meu amor pelo boy, Lourenço me levando para ser “enterrado no coração de meu pai”, o carinho por Picasso, a sinceridade arisca do michê, os seios de Estrela, o porteiro, o assassinato, o bancário, os outros michês, a fábrica de dominó, meus nove irmãos, o delegado, o IML, o cara do táxi no ir-e-vir dessa narrativa que Freire inventou. A malandragem paulistana. As pessoas da noite. As padarias... O teatro para mim era besteira d’alma, eram as brincadeiras vespertinas de criança, a cruz da interpretação, era a lembrança de minha mãe (todas as personagens que eu inventei são ela). Nesta vida, amei os aplausos, as viagens, as críticas de elogio, o sexo de curiosidade com os artistas bem-sucedidos, as metidas de rua, adorei foder gostoso atrás dos fliperamas. Eu amei de tudo e vou continuar amando. Heleno de Gusmão, em depoimento ditado para Paulo Lins
Sobre o autor(a)
Freire, Marcelino
Marcelino Freire é escritor. Nasceu em 1967, em Sertânia, Pernambuco. Viveu no Recife e desde 1991 reside em São Paulo. É autor, entre outros, dos livros “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial) e “Contos Negreiros” (Editora Record – Prêmio Jabuti 2006). Em 2004, idealizou e organizou a antologia de microcontos “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século” (Ateliê). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro. Participou de várias antologias no Brasil e no exterior. “Contos Negreiros” foi publicado em 2013 na Argentina, pela Editora Santiago Arcos e com tradução de Lucía Tennina, e no México, pela Librosampleados, com tradução de Armando Escobar. Criou a Balada Literária, evento que acontece em São Paulo desde 2006, com edições em Teresina (desde 2017) e Salvador (desde 2015). No final de 2013, publicou seu primeiro romance, intitulado “Nossos Ossos” (Record – Vencedor do Prêmio Machado de Assis), publicado também na Argentina, pela editora Adriana Hidalgo, na França pela editora Anacaona, e em Portugal pela editora Nova Dheli. Em 2018, lançou pela José Olympio o livro “Bagageiro”, que reúne o que ele chama de “ensaios de ficção”. Coordena oficinas de criação literária desde o ano de 2003. |